sábado, 5 de setembro de 2009

Desprezo pelo Homem-O Anticristo, Nietzsche


Chegado a este ponto, não reprimo um suspiro. Há dias em que me atormenta um sentimento mais negro que a mais negra melancolia: o desprezo pelo homem. E para não deixar dúvidas quanto ao que desprezo, a quem desprezo: é o homem de hoje, o homem de que sou fatidicamente contemporâneo. O homem de hoje - o seu hálito impuro sufoca-me... Em relação a coisas passadas sou, como todos os adeptos do saber, de uma grande tolerância, isto é, de um magnânimo autodomínio: percorro o universo de manicómio de milénios inteiros, quer se chame «cristianismo», «fé cristã» ou «Igreja Cristã», com uma sombria precaução - e abstenho-me de tornar a humanidade responsável pelas suas doenças mentais. Mas o meu sentimento muda, rompe-se, assim que entro nos tempos modernos, no nosso tempo. O nosso tempo é ciente... O que, outrora, era apenas mórbido, hoje, tornou-se indecoroso - é indecoroso, actualmente, ser cristão. E aqui começa o meu asco. Olho à minha volta: já não resta nem uma palavra daquilo que, em tempos, se chamava «verdade»; já não suportamos sequer que um sacerdote tão-somente pronuncie a palavra «verdade». Mesmo que se tenha apenas a mais modesta pretensão à rectidão intelectual, tem de se saber, hoje, que um teólogo, um padre, um papa, com cada frase que diz, não só erra, mas mente - e que já não lhe é possível mentir por «inocência» nem por «ignorância». Até o sacerdote sabe, tal qual toda a gente sabe, que já não há «Deus», nem «pecador», nem «Redentor», que «livre arbítrio» e «ordem moral universal» são mentiras - a seriedade, o profundo autodomínio, do espiríto já não permitem a ninguém não ser sabedor a esse respeito... Todas as concepções da Igreja estão reconhecidas como aquilo que são, como a mais maldosa fabricação de moeda falsa que há, com a finalidade de desvalorizar a Natureza, os valores naturais; o próprio sacerdote está reconhecido como aquilo que é, como a espécie mais perigosa de parasita, como a autêntica aranha venenosa da vida... Hoje, sabemos, a nossa consciência sabe o que valem essas sinistras invenções dos sacerdotes e da Igreja, para que serviram as concepções com as quais se atingiu esse estado de auto-aviltamento da humanidade, um espectáculo susceptível de causar repugnância - as noções de «Além», de «juízo final», de «imortalidade da alma», de «alma» até, são instrumentos de tortura, são sistemas de crueldade, graças aos quais o sacerdote passou a dominar e continuou a dominar... Toda a gente sabe isto e, não obstante, continua tudo na mesma. Para onde foi o derradeiro sentimento de decoro, de respeito por si próprio, se até os nossos estadistas, um género de homens aliás muito despreocupados e anticristãos de cima a baixo na acção. ainda hoje se intitulam cristãos e vão à comunhão?... Um jovem príncipe à frente dos seus regimentos, magnífico como expressão de egoísmo e da presunção do seu poco - mas, sem qualquer pudor, confessando-se cristão!... A quem nega, pois, o cristianismo? A que chama ele «mundo»? Ao ser soldado, ao ser juiz, ao ser patriota; ao facto de alguém se defender, de prezar a sua honra, de querer o que lhe traz vantagem, de ser orgulhoso... Qualquer prática quotidiana, qualquer instinto, qualquer juízo de valor que se torne acto são, actualmente, anticristãos: que monstro de falsidade há-de ser o homem moderno, para que, apesar disso, não se envergonhe de ainda se chamar cristão!
O Anticristo, Nietzsche

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